Humanização

   




   Admiro bastante os projetos de humanização hospitalar.Humanizar é "tudo quanto seja necessário para tornar a instituição adequada à pessoa humana e a salvaguarda de seus direitos fundamentais", ou seja, pode-se dizer que a humanização é um movimento de ação solidária em prol de uma produção de saúde digna para todos, cooperando com as pessoas, buscando reciprocidade e ajuda mútua."(Mezomo 2001,p.7).
Existem várias forma de humanização em um ambiente hospitalar. Decidi relatar o depoimento de uma aluna,a Miriam que participa de um projeto bem bonito chamado "Sorrir é viver"(http://www.sorrireviver.org/).Eu a conheci ao dar uma aula no hospital para os alunos do quarto ano da Faculdade de Medicina do ABC e fiquei  feliz ao perceber que muitos alunos vêm já com esta visão humanizada.Na ocasião,tínhamos uma paciente a M.C., que era portadora de uma síndrome na qual a pessoa vai aos poucos perdendo suas funções musculares e neurais e ela "morava"conosco há 08 anos,porém adquirira uma infecção bem grave e estava num estado bem crítico.A Miriam já tinha uma certa familiaridade com essa paciente e quando soube que ela estava num estado bem grave ficou bem sensibilizada.Levei-a até a UTI Pediátrica e não sabíamos que aquela seria a última vez que não apenas a Miriam mas eu também veria a nossa pacientinha:ela partiu naquela madrugada.Isso me aproximou da Miriam e foi ela quem me mandou este depoimento de algo que ela vivenciou como "clown",personagem do projeto que citei acima:








                     Cirurgia plástica necessária

"Desta vez, tudo ocorreu numa 6ª feira, 12 de abril de 2012. A 5ª feira, dia que costumamos atuar, havia sido muito desencontrada entre os clowns, de modo que nos dividimos e alguns postergaram a atuação para o dia seguinte. Isso nos permitiu atuar sem nos prendermos ao tempo. Ainda bem, pois nem imaginávamos a odisseia infantil que iríamos fazer parte. Que mundo mais “mágico” o da infância! Fico me perguntando o quão bem não deve fazer às crianças, doentes ou não, entrarem nessas histórias e as vivenciarem de verdade, sabendo, ou não, que são de brincadeira.
Chegamos às 18h no hospital e nos dirigimos ao andar da pediatria. Atuamos até às 20h30...sim, duas horas e meia! E eis que, dessas duas horas e meia, umas duas horas e quinze minutos foram acompanhadas pela L, de 4 anos. Quando entramos em seu quarto, ela estava de pé na cama, olhou pra gente e já começou a interagir. Os clowns eram a Shudai e a Dori.
L.: Olha os palhaços!
Dori e Shudai: Palhaço? Aonde palhaço? (os clowns nunca se reconhecem como palhaços, eles são eles mesmos, com nome, personalidade própria e tudo.)
L.: Vocês! Vocês são palhaços! Olha o seu nariz!
Shudai: ele tem 2 furinhos que nem o seu, normal!
L.: Não, mas o dela (da Dori) é empinadinho. (o nariz da Dori é maior e mais empinado do que o da Shudai)
Dori: Ah, eu sei...eu vou fazer uma plástica, mas é que eu não tenho dinheiro ainda...
L.: Ah! Pera só um pouco...
A L. desce de seu leito, vai ao seu criado mudo, abre a gaveta, tira duas moedas de 10 centavos e dá para Dori e Shudai.
Dori e Shudai: Aaah! Agora sim! Já podemos fazer a plástica! Só precisamos de um médico!
L.: Os médicos ficam no balcão lá na frente!
Dori e Shudai: então você tem que ir com a gente pedir pra fazerem uma plástica no nariz, se não eles não vão fazer, né. Você pede e a gente paga.
L.: Hummm....(virando os olhos para cima como alguém que está pensando....eu fiquei esperando um desculpa qualquer)....deixa eu por meu chinelo!
E eis que a L. nos acompanha mesmo até o balcão da enfermagem. Combinamos que ela ia pedir ao médico e, quando chegamos lá, havia um residente indo embora...
Dori: Vai lá, L., pede pra ele.
Mas ela não foi.
Dori insiste: Vai, por favooooor! Olha o meu nariz como é!!
L.: Sabe o que é? É que ele é meu médico!
Shudai e Dori: ele é bravo?
L.: Nããão, ele é legal, mas eu tenho vergonha! (e ficou toda tímida....)
Shudai e Dori: Tá, então a gente pede e você paga.
L.: tá bom. (ainda tímida)
Agora então, Dori e Shudai passam as duas moedas de volta para a L., afinal, ela que ia pagar. E após todo esse cochicho nos encorajando para pedir o tal feito, Dori o fez:
- Oi, é você que faz plástica aqui? Porque eu preciso fazer uma plástica no meu nariz e a L. que vai pagar pra mim, já trouxemos o dinheiro.
O residente se mostrou muito carinhoso com sua pequena paciente Letícia, abraçando-a de cima e trocando algumas palavras aos risos do tipo “Ah é, L.? você que vai pagar...” etc. Indicou-nos em seguida um corredor com uma porta ao fundo, o centro cirúrgico. Esse corredor também dá acesso à UTI infantil, de modo que o diálogo seguinte com a L. foi assim:
            Dori e Shudai: Então vamos lá no corredor, L., pedir a plástica?
L.: Vocês podem ir, mas eu não vou porque lá eu vou pegar doença.
Dori e Shudai: Não, tudo bem, a gente te segura e não deixa ninguém te pegar.
L.: Não, lá eu vou pegar doença! Lá é cheio de doença no chão!! E aí eu vou ter que ficar mais tempo internada! Meu pai que disse e é verdade, não é mentira!!!
Dori e Shudai: Cheio de doença no chão? Como assim? E nesse chão aqui que estamos pisando, não tem doença?
L.: Não, é que aqui a gente só pode andar na linha preta que não tem doença! (aquela linha bem fininha que divide o chão da enfermaria, porém, até agora, tínhamos andado no branco normalmente). E, lá no corredor, não tem linha preta. (Na verdade é o mesmo piso, só que o reflexo da luz no chão não deixava ver a linha preta daonde estávamos olhando)
Shudai e Dori: Tem linha preta sim, é que não dá pra ver. Vem, a gente vai todas juntas pela linha preta e ninguém vai te pegar!
L.: hum, tá bom, mas primeiro eu vou buscar a minha espada.
Dori e Shudai a acompanham até o quarto para pegar a tal espada. Eu realmente achei que fosse surgir uma espada de brinquedo ou algo assim, mas acho que, por um momento, eu tinha esquecido com que nível de imaginação e criança eu estava lidando. Ela nos levou ao seu quarto e nos mostrou a sua super espada que consistia num canudo encaixado numa seringa.
Dori e Shudai: Pronto! Agora estamos protegidas! As doenças não vão nos pegar!
Voltamos para o balcão de enfermagem e demos uns passos em direção ao tal corredor que daria acesso ao centro cirúrgico, andando só pela linhazinha preta, pra não pegar doença. Quando estávamos  ainda no começo do corredor, ela vira e diz:
L.: Hã! Não vai dar! A enfermeira aqui é muito brava, ela não vai deixar a gente entrar.
Acabamos então desistindo e resolvemos voltar.
Dori e Shudai: Ah, então tá bom, vamos voltar pro seu quarto, né.
Voltamos para o quarto dela, enquanto a Dori continuava lamentando sobre seu nariz, como ele poderia ficar daquele jeito e etc. Letícia sentou em sua poltrona e depois de muito pensar disse:
- Já seeeeei! Tem a Dra Lilica! Ela pode te ajudar!
Shudai e Dori: Séério?
L.: Mas se vocês forem na Dra Lilica vocês vão ter que se espirrar água! (ok, aqui começa a parte mais bizarra da atuação)
Shudai e Dori se olham sem entender nada: espirrar água?
L.: É, se não ela vai perceber que vocês são humanos e ela só cuida de não-humanos.
Neste momento, quase perguntei se essa médica era veterinária, mas deixei pra lá.
Dori e Shudai:E quem é humano? Nós somos humanos?
L.: Sim.
Dori e Shudai: Você é humana?
L.: Sim.
Dori e Shudai: Ele é humano? (apontando para um nenê no mesmo quarto)
L.: claro, ele é um bebê!
Dori: Você pega ele e bebe, então?
L.: Nãão, bebê de colo, sabe?
Dori: você põe no colo e bebe?
L.: Nããão, bebê de colo, de mamadeira, sabe?
Shudai, já ficando irritada: Isso, Dori, você põe o bebê no colo e dá mamadeira. E não é um nenê?
L.: Nããão, nenê é o que tem dentro da barriga quando você abre e tira.
Dori e Shudai: Aaaah! Bom, e quem seriam então os não-humanos?
L., muito taxativa: os que matam! (puxa, que pesado). Aah, mas se vocês espirrarem água, ela não percebe que vocês são humanos. Mas mesmo assim é perigoso, viu....eu acho melhor não irmos!! (e faz uma carinha pensativa)
Dori e Shudai: Ah, humm, estamos com um pouco de medo dessa Dra Lilica, acho que não vamos nela não.
Dori: Mas e agoooora? Vou ficar assim, com esse narigããão?
L.: Aaaah! O meu pai pode operar você! Eu vou ligar pra ele e, se ele não estiver dormindo, eu pergunto se ele pode.
Ela então pegou o celular e ligou pro pai. Depois de um tempinho segurando o celular no ouvido sem falar nada, diz:
- Recarregue seu oi... Está sem bateria, precisa recarregar. (e fecha o celular colocando de volta no criado mudo)
Shudai: Ish, acho que vc vai ter que ficar sem plástica mesmo...
Depois disso, a L. ainda nos acompanhou muito pelo corredor e gostoso também foi quando estávamos atuando em outro quarto e a L. chega perto da porta, pelo lado de fora, olha pra gente e diz: “Vamo”? (fazendo aquela jogadinha com a cabeça pro lado que ela queria que fôssemos) e nós respondemos: vamos aonde? L.: “Passiá!”
Interessante também é comparar as reações dos meninos e das meninas para a mesma interação. O exemplo que tive esse dia foi ao soltar bolhas....se soltar para as meninas, elas sopram no ar, estoram com a mão e etc. Os meninos têm o mesmo princípio, porém, mesmo com um braço engessado, dão socos no ar e parecem que estão como que lutando boxe com as bolhas...chega a ser engraçado toda a energia que colocam nessa destruição supostamente sutil.
Outras crianças também interagiram bastante, a enfermaria estava bem cheia naquele dia e 2h30 é mto, mto tempo. Porém, deixo registrado principalmente este (longo e inspirador) diálogo com a L., pois é impossível lembrar de tudo."

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